A FARSA DOS ELETRODOMÉSTICOS
A Farsa da Revolução Tecnoeletrodoméstilógica – O Movimento
Num quarto ouviam–se tiros; no outro, lágrimas; no outro, "I'll say you what I want, what I really want..." – hm, muito retrô. Correção: num quarto metralhadoras, no outro metralhadoras – jornalismo verdade, é como batizam, vai entender – no outro "Eu já cantei uô-uô e também yeah-yeah". A metralhadora – de videogame, as lágrimas ao som de metralhadoras – revelam a identificação de uma mulher desesperada com mais um programa desesperador qualquer, a música – só para não enfatizar um clima tão melancólico e mortificante.
Um silêncio esmagador. Uma escuridão tanto quanto esmagadora. Um soluço – só as lágrimas continuaram. Pensem na voz mais patética, aguda e irritadiça: "Ô mãe, acabou a luz?!". A resposta se limitou na atitude do próprio gurizinho sardento apertar freneticamente o interruptor. É, falta de luz. Quanto tempo? Só o tempo dirá. E então um mundo incomunicável, sombrio até, mas tranquilo. Quinze minutos: nada. Meia hora, duas horas... Nada. Melhor dormir.
*****
Nunca houvera sono tão profundo e bem aproveitado. Todos dormiram no mínimo dez horas. O menino dormiu tão aparentemente suave que parecia confortado em nuvem de algodão. A menina, tão raramente flagrada em tão serena forma, angelical até, arriscaria dizer. A mulher pareceu descansar por todas as noites que passara em claro sofrendo, chorando.
O saquinho de batatas sardento sorria e se espreguiçava. "Maaaa..mãe...", sussurrou de olhos semi-abertos. Quando os abriu foi surpreendido por... – não, não, só engano. A impressão foi de que a tevê estivesse o fitando. Bobeira. Saltitante foi até a porta, mas seus pézinhos gordinhos estavam sendo observados. Virando repentinamente para a tevê flagrou aqueles dois imensos olhos vermelhos, pixel por pixel, conhecia-os muito bem. Inimigo quase-imbatível de seu jogo favorito e centralizadas as palavras: "Game over". Significa isto que a energia voltou, certo? Pressionou o botão power do videogame e ia enfim se retirando do quarto quando, sabe-se lá como – visão periférica possivelmente –, a tomada estava vazia. Nenhum fio conectado. Inconformado, foi verificar de perto – pobre tolo. Um fio de paradeiro duvidoso deu-lhe um golpe e rapidamente ele estava caído inconsciente no chão.
– O último, chefe?
– O último. Daremos sequência a nossa reunião.
*****
Uma fila desfilava e rebolavam – na frente algumas fitas, talvez todos os clássicos WaltDisney e alguns vídeos caseiros; a seguir uma imensidão de Cd's e Dvd's, alguns piratas, alguns com a etiqueta amarela de liquidação, outros tantos de trilhas de novelas; então aparelhos menores como velhos radinhos de pilha (aqueles AM/FM com lanterna na ponta), aparelhos de Mp3, Mp4 e Mp(incógnita); celulares, desde os tijolões até os touchscreen; desengonçadamente um computador andava com suas peças cambaleando mas foi ultrapassado pelo notebook; televisores, muitos televisores, até o de catorze polegadas preto e branco que andava abandonado no sótom; pof fim um batalhão de utilidades domésticas (fogão, geladeira, microondas, aspirador de pó), o microsystem e o home theater e enfim o pelotão de controles remotos (todos os tamanhos e botões de todas as cores – imagináveis e inimagináveis).
Estava armada e declarada a guerra.
A Farsa dos Eletrodomésticos – O Inquérito
– Os reféns e/ou réus estão prontos, chefe.
– Traga-os.
Amordaçados e amarrados em cadeiras de escritório estavam mãe e filhos.
– Que bom que essa cadeira tem rodinhas – ironiza um videogame que empurra a cadeira onde se senta o menino.
– Argh! – se limita a resmungar o garoto.
– Me respeite, moleque! Te forneci muitas horas de diversão. Acho que está na hora de escutar umas boas verdades! – diz o videogame já alterado.
– É mesmo! Seja lá como sou decodificado, mas faz cócegas! – diz um Cd de jogos.
– Você ao menos tem a sorte de não se ver girar! Se eu tivesse como vomitar, seria esse o momento.
– Girar? Além de cócegas fico todo enjoado e tonto, você só observa e fica fazendo pose e...
– Chega! – interrompe bruscamente o "chefe". Curiosamente o chefe não tem muito mais que cinco centímetros de altura, sabe-se lá como, mas impõe muito respeito. É um benjamim acinzentado com três ou quatro entradas. – Estamos unidos aqui com um propósito! Propósito aquele que vale o esforço qual estamos sendo submetidos. – Sua voz era de um grave e incentivador. Faz todo sentido ser o líder. Mas a empolgação é a de político em comício, aí vem um discurso que talvez tome muito tempo...
O menino ouvia tudo de olhos vidrados e arregalados, como ficavam enquanto jogava madrugada a dentro. A mãe afundava-se na cadeira com o olhar desesperado de quem não entende o que se passa. Já a adolescente tinha uma indiferença mórbida; talvez fosse só pose, que seja.
Após um zunido ensurdecedor o microfone do karaokê já estava plugado em gigantescas caixas de som, numa espécie de púlpito onde ocorreriam os depoimentos.
As tevês se propiciaram a ser o júri – isso porque se julgavam experientes no quesito julgamento, levando-se em conta o número elevado de séries e programas de âmbito policial.
O benjamim assistia tudo atentamente da tomada mais alta, de onde nada lhe fugisse do olhar vígil. Os réus estavam posicionados de modo que poderiam ver cada um dos acusadores – até o barbeador elétrico do marido se encontrava com olhar indagador.
Just for record the weather today is quite sarcastic with good chances of A: Indifferences and B: Desinterest in what the critics say. It's time for us to take a chance, it's time for us!
– Bravo! Bravíssimo! – diziam ouriçados uma batedeira e um liquidificador louvavam às belas palavras do mycrosystem.
– They said it was fabulous – transmitiu o Mp3.
– Oh, thank you, my darlings. – ele pouquíssimo entendia o que a maioria dos ali presentes falavam, já que ele era estrangeiro. Dentre uma maioria bem nacionalista, alguns sem conseguir evitar o sotaque espanhol rio-platense, alguns possuem um inglês "whazup" ou robotizado. Há também aqueles aparelhos aptos a comer peixe cru – ou comer pastel na feira, genious.
*****
Um televisor recém-chegado ao invés de servir como júri, foi convidado a ser a primeira testemunha a depor.
– Eu vejo nas faces desfiguradas e vozes computadorizadamente modificadas palavras e emoções frívolas e rancorosas, dolorosas, sofridas, devido a tamanha perversidade e crueldade inspiradas em programas violentos, sangrentos e maléficos. Vejo seios descobertos como se fossem educativos... Vejo.. Ver não é o verbete mais apropriado: transmito. Recapitulando: transmito fatos manipulados como se fossem as mais puras verdades... Universos paralelos para que vocês emaranhados de veias vejam o sangue escorrer de meus elétrons. Violência?
– Vi o len...ço? – gagueja um radinho made in China, sem quase nada compreender.
– Violência, estúpido! – continua a tevê – Nas minhas transmissões tudo é violência! O futebol é violento, os desenhos violentos, o humor violento, os amores violentos! Logo, tudo que é motivado pela paixão será motivo de guerra! Afinal, há uma coisa que aprendi nos canais que explicam a vida selvagem: é sempre o maior predador que é o rei da floresta.