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O Mundo Pelo Avesso

O MUNDO PELO AVESSO

EMIR SADER

9/10/2004

Exploração comercial de crianças e adolescentes

Com a chegada de mais um Dia das Crianças, a publicidade destinada ao público infantil ganha força nos meios de comunicação. Neste artigo, o colunista busca as origens desse fenômeno iniciado após a II Guerra, e mostra como o consumo, em vez da cidadania, tornou-se um dos primeiros passos para a vida adulta.

A estruturação do mercado de consumo como o conhecemos data do segundo pós-guerra. O boom de consumo das décadas posteriores começou ali, mesmo se algumas das mercadorias essenciais dessa prática viessem de muito antes – como o automóvel, mas que só teve a generalização do seu consumo para a classe média a partir dos anos cinqüenta. Foi ainda na primeira metade dessa década que começou a surgir o mercado segmentado, dirigido e inaugurado pelo mercado para os homens solteiros ou divorciados. Nesse contexto, a fundação da revista Playboy é um marco, com suas propagandas dirigidas a esse público – o homem separado em regra geral sobe de nível de vida, enquanto a mulher desce –, acompanhadas das respectivas mulheres nuas e piadas picantes.

O mercado para as mulheres – considerando que são elas que fazem as compras domésticas e, posteriormente, com a generalização do divórcio e da entrada maciça da mulher no mercado de trabalho, aqui tomada como consumidora independente – se seguiu ao dos homens, com os programas de televisão voltados para elas, concomitantemente à onda feminista. O marketing de produtos para adolescentes, como grupo separado dos adultos e das crianças, foi se gestando desde que as empresas de publicidade estadunidenses criaram a palavra adolescente – teenager – em 1941.

Foi um longo processo até que se constituísse um mercado específico para os jovens, com os publicitários avaliando que os adolescentes gastariam o dinheiro dos seus pais em filmes, cosméticos e discos. Já em 1945, terminada a guerra, uma revista dos EUA chamada ”Seventeen” escrevia memorandos para as agências de publicidade dizendo que os jovens adolescentes eram “macacos de imitação”, com a tendência a imitar-se mutuamente, acabando por usar as mesmas roupas e comer as mesmas comidas. Os marqueteiros buscavam ganhar seus clientes ainda enquanto eram jovens. Logo esse campo foi ampliado para as crianças de 9 a 13 anos, chamados de pré-adolescentes, que passaram a ser considerados “a alma do mercado juvenil”.

O marketing voltado para os jovens surgiu nos anos oitenta, juntamente com grandes acontecimentos midiáticos, dos quais o filme “Tubarão”, em 1975, e “A guerra das galáxias’, em 1977, foram marcos que, mais tarde, tiveram nas “Tartarugas Ninjas” seu apogeu. O sucesso de bilheteria de filmes como esses poderia promover a venda de uma grande quantidade de bugigangas complementares, de bonequinhos de plástico até roupa de cama. Um segundo acontecimento importante nos EUA – meca dos estilos de consumo contemporâneos – ocorreu quando o Congresso desse país bloqueou a aprovação de regulamentações das publicidades dirigidas às crianças, valendo-se do argumento de que a noção de “publicidade abusiva” era muito vaga e afetava o livre comércio.

“A influência das crianças aumentou” – segundo afirmação de um publicitário estadunidense na Quarta Conferência Anual de Publicidade e de Promoção para Crianças (sic), um evento que entrega prêmios aos melhores publicitários para o mercado infantil, realizada no dia 10 de setembro de 2001, véspera dos atentados “As crianças são o setor mais poderoso do mercado e devemos aproveitar”, complementou ele. Calculam eles que as crianças conseguem de seus pais cerca de US$ 300 bilhões anualmente para seu consumo.

Multiplicam-se revistas especializadas que têm sempre alguma “celebridade” na capa, propondo roupas novas, sempre voltadas para as marcas. Todas buscando convencer aos adolescentes do mundo inteiro – porque as revistas nascem nos EUA, e rapidamente encontram suas versões locais em dezenas de outros países – de que o mundo inteiro é um shopping-center global, com cartões de crédito para eles incluídos. Assim, meninas de onze anos se depilam, outras tomam comprimidos para emagrecer, enquanto os fabricantes de automóveis se dirigem às crianças para tentar que influenciem seus pais na compra de carros novos de determinada marca.

Cada vez mais escolas particulares recebem patrocínios de empresas, com suas marcas povoando cada vez mais espaços que deveriam ser educacionais. Livros didáticos trazem matérias com marcas conhecidas. A idéia é a de que se tornar consumidor seria um estágio para o caminho da idade adulta, confundindo cidadania com consumo. “Quando se constrói uma relação entre uma criança e uma marca, se pode criar valor”, diz um especialista em consumo infantil. Um grupo que se autodenomina Gepeto afirma que constroem uma marca da mesma forma que Gepeto criou Pinóquio, “dando vida às marcas”. Tenta-se colonizar assim desde cedo o imaginário infantil, considerando-os como mini-adultos ou como consumidores precoces.

 

Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História".

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